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O VÉU DA PRIVACIDADE: PLATAFORMAS DIGITAIS E A BUSCA POR DEVEDORES

Atualizado: 24 de mar.

Por David Camargo, Ricardo Erhardt e Werner Schumann


O avanço da tecnologia e a digitalização crescente das relações sociais e econômicas trouxeram à tona um debate jurídico de extrema relevância: o fornecimento de dados pessoais por plataformas digitais para a localização de devedores. Casos recentes no Brasil, envolvendo empresas como iFood, Netflix, Uber, Rappi e 99, evidenciam a tensão entre dois direitos fundamentais: o direito à privacidade e proteção de dados e o direito do credor de receber seu crédito. Este artigo analisa criticamente quatro decisões judiciais emblemáticas sobre o tema, explorando o conflito entre esses direitos e propondo uma reflexão sobre como equilibrá-los em um contexto digital.


As matérias que fundamentam esta análise são:


- "TJ/SP autoriza consulta ao iFood, Netflix e Uber para localizar devedor";

- "TRT-18: Netflix, Uber e iFood não devem fornecer dados de devedores";

- "Justiça do RJ oficia Netflix, Uber e iFood para localizar devedor";

- "Juíza intima iFood, Rappi, 99 e outros apps para localizar devedor".


Esses casos ilustram a falta de uniformidade nas decisões judiciais e a necessidade de uma abordagem mais consistente para lidar com essa questão.


Análise das Matérias: Um Cenário de Divergências


As decisões judiciais analisadas revelam posturas distintas do Poder Judiciário brasileiro em relação ao fornecimento de dados por plataformas digitais:


1. TJ/SP autoriza consulta ao iFood, Netflix e Uber - O Tribunal de Justiça de São Paulo permitiu que credores acessassem dados de plataformas como iFood, Netflix e Uber para localizar devedores. A justificativa foi a necessidade de garantir a efetividade da execução de dívidas, priorizando o direito do credor.


2. TRT-18 veta fornecimento de dados por Netflix, Uber e iFood - Em sentido oposto, o Tribunal Regional do Trabalho da 18ª Região decidiu que essas plataformas não devem fornecer dados de devedores, destacando a proteção da privacidade e os limites impostos pela Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD).


3. Justiça do RJ solicita dados a Netflix, Uber e iFood - Justiça do Rio de Janeiro determinou que essas plataformas fornecessem informações para localizar um devedor, alinhando-se à postura do TJ/SP e enfatizando a necessidade de facilitar a recuperação de créditos.


4. Juíza intima iFood, Rappi, 99 e outros apps - Uma juíza intimou diversas plataformas de entrega e transporte para fornecer dados de um devedor, reforçando a tendência de alguns magistrados de recorrer a informações digitais para assegurar o pagamento de dívidas.


Essas decisões refletem um panorama de inconsistência jurídica, onde a interpretação dos direitos envolvidos varia conforme o tribunal ou o julgador, expondo a complexidade do tema.


Direito à Privacidade e Proteção de Dados: Um Princípio em Jogo


O direito à privacidade é um pilar essencial em uma sociedade digitalizada. No Brasil, a LGPD (Lei nº 13.709/2018) regula o tratamento de dados pessoais, estabelecendo que sua coleta, uso e compartilhamento devem ocorrer apenas com base legal clara – como o consentimento do titular ou o cumprimento de uma obrigação legal. Plataformas como iFood, Netflix e Uber armazenam informações sensíveis, incluindo dados de localização, hábitos de consumo e contatos, que, se mal utilizados, podem comprometer a privacidade dos usuários.


Compelir essas empresas a fornecer dados para localizar devedores levanta preocupações sérias. Primeiro, há o risco de exposição excessiva, violando o princípio da proporcionalidade. Segundo, a entrega de informações a terceiros pode erodir a confiança dos consumidores nas plataformas, que dependem da percepção de segurança para operar. Por fim, a LGPD exige que qualquer divulgação de dados seja estritamente necessária e justificada, o que nem sempre é claro nas decisões judiciais favoráveis aos credores.


Direito do Credor: A Legítima Busca por Justiça


Por outro lado, o direito do credor de receber seu crédito é um princípio consagrado no ordenamento jurídico brasileiro, previsto no artigo 5º, XXXV, da Constituição Federal, que assegura o acesso à justiça. Em um país onde a execução de dívidas é frequentemente marcada por lentidão e ineficiência, a dificuldade em localizar devedores agrava o problema. Muitos devedores se valem da falta de informações atualizadas para evitar o pagamento, prejudicando credores que dependem desses recursos.


Nesse contexto, plataformas digitais surgem como fontes valiosas de dados. Endereços de entrega (iFood, Rappi), registros de deslocamento (Uber, 99) ou informações de contato associadas a assinaturas (Netflix) podem ser ferramentas eficazes para tornar a execução judicial mais célere e justa. Negar aos credores o acesso a essas informações pode perpetuar a impunidade e desequilibrar as relações econômicas.


Conflito e Equilíbrio: Um Desafio Jurídico


O cerne do debate está no confronto entre esses dois direitos. De um lado, a privacidade dos dados protege os indivíduos contra abusos e mantém a confiança no ecossistema digital. De outro, o direito do credor busca garantir a efetividade da justiça e a equidade nas relações contratuais. As decisões judiciais analisadas mostram essa dicotomia: enquanto o TJ/SP e a Justiça do RJ priorizam a recuperação de créditos, o TRT-18 enfatiza a proteção de dados.


Para alcançar um equilíbrio, algumas medidas podem ser consideradas:

- Restrição de Dados: Limitar o fornecimento a informações básicas, como nome e endereço, evitando a entrega de dados sensíveis como histórico de uso.

- Controle Judicial: Exigir ordens judiciais detalhadas, justificando a necessidade e a proporcionalidade do acesso aos dados.

- Mecanismos Alternativos: Priorizar outras formas de localização (como consulta a cadastros públicos) antes de recorrer às plataformas.

- Transparência: Garantir que os usuários sejam informados sobre o uso de seus dados em processos judiciais, alinhando-se aos princípios da LGPD.


Opinião Crítica: Rumo a uma Solução Equilibrada


O fornecimento de dados pelas plataformas não pode ser tratado como uma solução automática para a localização de devedores. A privacidade é um direito fundamental que não deve ser relativizado sem critérios claros, sob pena de abrir precedentes perigosos em um mundo onde os dados pessoais são cada vez mais valiosos. Por outro lado, é inegável que os credores precisam de instrumentos eficazes para fazer valer seus direitos, especialmente em um sistema judicial que frequentemente falha em assegurar a execução de dívidas.


As decisões divergentes expõem uma lacuna no ordenamento jurídico brasileiro. A LGPD, embora robusta, não oferece orientações específicas para casos como esses, deixando os juízes com ampla margem de interpretação. Essa falta de uniformidade gera insegurança jurídica e compromete tanto os usuários quanto os credores.


Seria apropriado que o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) ou o legislador edite normas claras, estabelecendo:


1. Que o acesso a dados de plataformas seja um recurso excepcional, usado apenas após esgotadas outras vias de localização;

2. Que os dados fornecidos sejam mínimos e anonimizados sempre que possível;

3. Que as plataformas criem canais específicos para atender a ordens judiciais, garantindo conformidade com a LGPD e transparência aos usuários.


Conclusão


O fornecimento de dados por plataformas digitais para localizar devedores é um dilema que reflete os desafios da era digital. As decisões do TJ/SP, TRT-18, Justiça do RJ e da juíza que intimou iFood, Rappi e 99 mostram a urgência de equilibrar o direito à privacidade com o direito do credor. Sem uma abordagem consistente e bem regulamentada, corremos o risco de sacrificar um direito em nome do outro. Cabe ao sistema jurídico evoluir, oferecendo soluções que respeitem a complexidade desse embate e promovam justiça em um mundo cada vez mais conectado.



David Camargo, Ricardo Erhardt e Werner Schumann, são advogados do escritório DAVID CAMARGO & ADVOGADOS ASSOCIADOS.



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